De indivíduos sujeitos a um
ritual estranho e representativos de uma visão diferenciada de vida e morte,
para “morto-vivos mais fortes que zumbis”,
as múmias poucas vezes são devidamente aproveitadas pelos Mestres.
Aqui serão expostas ideias de uso
diferenciado de múmias (ainda como inimigos), esmiuçando desde suas possíveis
origens, até seus poderes.
Cabe ainda uma observação: ainda
que a mumificação tenha sido uma prática de vários povos, aqui se considerará
como principal fonte o processo egípcio, o mais conhecido nos dias atuais,
principalmente no que diz respeito ao trabalho manual sobre o cadáver.
Por que mumificar?
Para os egípcios, a alma do morto
(ba e ka, com significados complexos que iam da energia vital até algo
similar a alma mesmo) retornaria da
morte, e, novamente em vida, precisaria de seu corpo (khat), daí a necessidade de conservá-lo, e de manter na sepultura
diversos elementos do morto (desde jóias e armas (veja abaixo), até animais ou
escravos também mumificados).
Já os incas, povo da região onde
hoje é o Peru (e que possuem diversas múmias mais antigas que às egípcias)
tinham uma concepção parecida, com a diferença de que a múmia não ficava
isolada em seu sarcófago sem ser perturbada, como no Egito, mas continuava
integrada à sociedade inca. Para este povo a relação com os antepassados era
mais próxima, cultuando-os, pedindo seu auxílio em momentos de dificuldade (de
forma similar ao Japão Feudal), mas chegando a fazê-lo fisicamente, muitos
indivíduos importantes mantidos mumificados em um mausoléu acessível aos
familiares, e em outras regiões desfilando múmias em festividades locais,
integrando os mortos com vivos, uma concepção natural da morte diferente do
respeito solene de nossa cultura judaico-cristã.
Já em campanhas de fantasia, o
Mestre deve pensar nos motivos que levaram certo povo a praticar a mumificação.
Pode ser a ideia de vida após a morte citada até então, mas com algumas
modificações.
Digamos que o povo escolhido
valorize guerreiros e combate e, de forma similar aos vikings, acreditam que
guerreiros valorosos aguardarão auxiliar um deus guerreiro a combater os
inimigos, em uma espécie de apocalipse a vir (o Ragnarok nórdico). Porém, ao invés das almas participarem deste combate,
como na cultura viking, este povo conservaria o corpo por achar que as almas
retornariam para se apossar deste afim de lutar.
Quem sabe a concepção de um povo
que mumifica é que uma alma possui várias vidas, reencarnando a cada existência
(algo similar ao Hinduísmo), mas que cada corpo já possuído por esta alma
precisa ser conservado para que ela continue existindo (mesmo que em outra
encarnação).
Outra cultura poderia mumificar
somente sacerdotes, e de uma determinada religião, digamos como uma recompensa
da divindade, que concederia, assim, a “vida eterna” a seus fiéis seguidores.
Todas essas sugestões giram em
torno da mumificação estar profundamente ligada à religiosidade. Não à toa o
processo de mumificação egípcio (que incluía materiais específicos, elementos
difíceis de obter (como sal, bandagens, etc.)), contava com colocar no cadáver
diversos elementos religiosos como amuletos, colares e símbolos, além de haver
uma divindade específica ligada à tarefa. Isto permite criar um contexto que
personaliza este monstro de forma diferente da maioria dos morto-vivos. Porém,
se o Mestre desejar, pode fazer da mumificação algo com concepções de magia ou
ciência, digamos que uma múmia fosse um mago que descobriu como obter a vida
eterna dessa maneira (o que seria normalmente um lich), ou um cientista em um
processo similar ao da história de Frankestein, consegue conservar seu corpo
com vida, aguardando seu despertar no futuro (por um motivo qualquer).
Elementos ao redor da múmia
Uma maneira interessante de
desenvolver mais esse inimigo é detalhar bastante o local ao redor do
sarcófago.
Escritas (que podem ou não ser
hieróglifos) contam um pouco da história do indivíduo ali presente, e de seu
povo, enquanto objetos ao redor, pertencentes à múmia quando em vida, revelam
mais sobre ela, como armas, joias, objetos de arte, etc. Muitos tipos de armas,
por exemplo, denotará um militar ou alguém ligado à guerra.
As conhecidas máscara funerárias
egípcias deviam representar o rosto de quem ali estava sepultado, portanto se esse
elemento estiver presente, os PJs podem identificar mais detalhadamente que
tipo de pessoa ali está (homem, mulher, criança, etc.).
|
Canopos: vasos sagrados para armanezar os órgãos |
Nem toda múmia é humanoide...
Uma prática pouco conhecida dos
egípcios é a mumificação de animais de estimação. Assim, seria interessante os
PJs querendo confrontar um poderoso sacerdote, mas antes sendo atacados por
gatos, cães, e mesmo pássaros morto-vivos, que podem ser somente um obstáculo
menor, morto-vivos de poder limitado, ou um problema grande, se forem capazes
de transmitir doenças da mesma forma que as múmias humanoides.
Sem órgãos
Os sacerdotes que realizavam a
mumificação retiravam todos os órgãos do cadáver, colocando-os em vasos
(chamados canopos) que ficavam ao lado do sarcófago. A única exceção era o
coração, que deveria permanecer pois, quando o indivíduo fosse julgado por
Osíris (deus dos mortos), teria seu coração pesado em uma balança, afim de
descobrir se era um indivíduo bom (coração leve, sem más ações), ou mau
(coração pesa com as más ações cometidas em vida).
Assim, pode-se ter várias ideias a
partir disso.
Primeiramente, ao invés dos PJs
enfrentarem a múmia atacando-a (seja com armas ou com magia) até destruí-la,
talvez seja preciso também destruir esses órgãos para dar fim à criatura. Se o
Mestre quiser dificultar, pode estipular que a destruição de cada órgão
enfraquece o monstro (ou impede a proliferação da doença em uma vítima atacada
pela múmia), mas enquanto o coração está intacto, a imortalidade prossegue.
Cabe então aos PJs destruir todos os órgãos, e depois enfrentar diretamente o
monstro, procurando direcionar os ataques ao coração.
Ou quem sabe o único meio de impedir
alguém afetado pela peste da múmia seja através de algum ritual (que, por ser
da época da múmia, um passado muito distante, exige muita pesquisa dos PJs para
descobri-lo em detalhes). Os principais componentes desse ritual seriam os
órgãos dos canopos, o que permite aos PJs invadir os túneis e salas secretas
onde a múmia está (seja uma pirâmide ou não), e roubar os canopos, podendo
evitar um confronto direto com a múmia (o Mestre pode até colocar a criatura
como um tipo de predador, caçando os PJs enquanto estes vagam pelos túneis
escuros e apertados, criando um clima de tensão diferenciado).
Mais vivo que morto
Todas as ideias anteriores
consideravam o uso da múmia como um monstro a ser derrotado, uma criatura
terrível com poderes tenebrosos.
Mas e se lidando com a múmia, os
PJs encontram nela uma crise existencial, lamentando existir em uma era onde
nem os netos dos seus netos vivem? Ou quem sabe ela lamente matar outros, mas
seu corpo apodrecendo causa dores tão terríveis que não é mais possível
suportá-las.
Talvez ainda a múmia deseje sua
destruição, mas lutará contra isso por algo bastante conhecido dos PJs: fé. Ela
pode questioná-los “se vocês fossem o
último indivíduo que cultua um deus há muito esquecido, aceitaria que sua
destruição representaria o fim da divindade que tanto amaram, ou lutariam por
perpetuar, ainda que sozinhos, a existência dessa divindade?”.
Outros dilemas podem surgir, como
a revelação de que a múmia foi assassinada por inimigos de sua divindade e
mumificada contra sua vontade (similar ao ocorrido no filme A Múmia). A criatura se desesperaria ao
saber que sua eternidade advém de uma divindade que odiava.
Poderes
Tradicionalmente o grande
diferencial da múmia é a doença que seu toque causa. De desintegração
instantânea e uma doença gradual, os efeitos variam conforme a mídia, porém o
toque pútrido sempre está lá.
Como já dito anteriormente, o
Mestre pode desenvolver essa característica, colocando rituais como único meio
de desfazer os efeitos do toque (caso opte por não serem instantâneos). Mas
indo além, pode-se pensar que é através deste toque que a múmia rouba energia
vital dos vivos (de forma similar ao já citado filme A Múmia), então quanto
mais o indivíduo atacado vai ficando doente, mais a múmia parece menos pútrida.
Outra possibilidade, criada por
um jogador do meu grupo para o sistema da casa, é que somente pessoas de grande
prestígio e status tornam-se múmias (sacerdotes, reis, faraós, etc.), pois o
culto em torno dela, a adoração, fornece energia vital ao corpo mumificado. Por
isso, mesmo que uma múmia desperte, é necessário uma adoração constante em
torno da figura dela, com no mínimo o sacrifício de uma pessoa por ano em sua
homenagem, sendo a alma da vítima, junto da adoração, que dará energia para a
múmia agir.
Isto não apenas detalha mais o
meio que a múmia existe e age, como fornece explicações com história, e não
apenas uma simplicidade sobrenatural ou “foi magia”, como estamos acostumados.
Então, que logo os jogadores de
nossas campanhas enfrentem uma múmia, e que isto se torne memorável.
____________________________________________________________________________________________
Matheus Jack
Mestre de RPG, cosplayer, historiador, apaixonado por filmes.
Considera-se um quase-nerd, embora o citado, e mais o blog, deixe em dúvida o quão "quase" é.
Receba atualizações!